O QUE SERIA DE MIM SEM MINHAS AMIZADES...

terça-feira, 12 de julho de 2011




ESPIRITUALIDADE

Espiritualidade vem de espírito. Para entendermos o que seja espírito precisamos desenvolver uma concepção de ser humano que seja mais fecunda do que aquela convencional, transmitida pela cultura dominante. Esta afirma que o ser humano é composto de corpo e alma ou de matéria e espírito. Ao invés de entender essa afirmação de uma forma integrada e globalizante, entendeu-a de forma dualista, fragmentada e justaposta. Assim surgiram os muitos saberes ligados ao corpo e à matéria (ciências da natureza) e os vinculados ao espírito e à alma (ciências do humano). Perdeu-se a unidade sagrada do ser humano vivo que é a convivência dinâmica de materia e de espírito entrelaçados e inter-retro-conectados.
A espiritualidade nos convida à integração de nós mesmos e nos propõe a redescobrir que o equilíbrio está em crescermos numa unidade de desenvolvimento entre nosso corpo e sexualidade e espírito-espiritualidade e mística, com todos os condicionantes psicológicos e contextuais que nos envolvem.
Antes de mais nada importa enfatizar fato de que, tomado concretamente, o ser humano constitui uma totalidade complexa. Quando dizemos “totalidade” significa que nele não existem partes justapostas. Tudo nele se encontra articulado e harmonizado. Quando dizemos “complexa” significa que o ser humano não é simples, mas a sinfonia de múltipas dimensões. É uma rede de relações e conexões. Podemos discernir três dimensões fundamentais do único ser humano: a exterioridade, a interioridade e a profundidade.
É considerada espiritualidade aquilo que as pessoas, costumam viver no dia a dia da vida, vivendo com retidão, com o sentido da solidariedade, o cultivo do espaço sagrado do espírito, tanto nas suas religiões e igrejas como no modo de pensar, agir e interpretar a vida. A espiritualidade é uma das fontes privilegiadas de inspiração do novo, de esperança, de elaboração de um sentido pleno e de capacidade de auto transcendência do ser humano.
E segundo Dalai-Lama, citado por L. Boff: "Espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior."
Espiritualidade consiste em identificar em nós esta sede de infinito e de querer mais, de ir além do que está aí. Esta sede vem acompanhada do desejo de apropriação em que somos constantemente provocados a nos apropriar, adonar de coisas e pessoas. O desejo de posse está na relação com as coisas, pessoas, instituições e religiões, mas não mata a sede e a necessidade de espiritualidade.
Buscar o divino, portanto buscar espiritualidade faz parte da natureza humana e da felicidade.
Os muitos caminhos espirituais revelam também que não há limite para este universo e que através da história muitos e diversos caminhos foram e estão sendo percorridos. É neste sentido que o aprofundar uma Espiritualidade e Mística requer alguma identificação ou ao menos referência ao divino, não apenas a partir de conceitos externos de religiões ou crendices, mas, sobretudo como busca de resposta às questões fundamentais da nossa existência, tais como:
Para que vivemos?
Qual nosso lugar dentro da criação?
Ou o que podemos esperar para além desta vida?
A espiritualidade é fonte de esperanças e de dinamismo capaz de estimular, em cada pessoa, forças extraordinárias que serão raiz de energias tanto para viver o cotidiano como para superar barreiras que pareciam intransponíveis, sendo, por isso, aspecto importante e fundamental na busca equilibrada da transformação.
Através da história encontramos a vivencia de espiritualidades profundas. Muitos das pessoas que as viveram são considerados/as mestres e doutores e fundaram escolas de espiritualidade nas diferentes religiões. Com isto muitas vezes as religiões se apropriaram das experiências pessoais para constituí-las em doutrina ou norma, bem como em referência de espiritualidade.
Temos, portanto, caminhos de espiritualidade bem consagrados e de valorosos conteúdos doutrinais, bem como, de profundo relacionamento com o divino, acompanhados de uma mística de entrega e de doação capazes de ser caminho de felicidade. O que permanece como desafio é que estas experiências vividas por alguém possam ser usadas como referência para um seguimento, levando em conta a necessidade de cada pessoa que a assume dar a sua própria contribuição e fazer na prática, no seu próprio contexto e respondendo aos desafios que a vida apresenta em seu momento. Seria concretizar espiritualidade na mística transmitindo sua própria experiência-encontro com Deus. Seguir um carisma não pode ser uma imitação cega e desencarnada ou dependente. Em todas as religiões temos ótimas lições que podem contribuir num caminho para a comunhão com o transcendente e levar ao encontro de um verdadeiro sentido para a vida.
MISTICA
A Mística é uma decorrência da espiritualidade e tem a ver com a relação da pessoa com o divino, o transcendente, seu modo de perceber o divino e de sentir a sua presença dentro do seu contexto cultural. Há, portanto diferenças entre místicos orientais e ocidentais, com influencias culturais e existenciais próprias a cada um e somadas às suas próprias espiritualidades de origem.
Até pouco tempo pensava-se na mística como um privilégio de poucos, daqueles que tinham a vontade e a possibilidade de aprofundar-se no religioso e espiritual. Consistia numa certa separação do mundo e superação da materialidade, da corporeidade com tal compenetração no divino que ficasse acima das influencias das coisas para estar centrado totalmente, ou ao menos quanto permite a natureza humana, no divino, mergulhado no mistério que é Deus. Era uma libertação e superação das influencias e dependências em relação ao corpo, às coisas e pessoas para, mesmo no contato com elas, não se desviar da comunhão com o divino.
Não existe uma única explicação sobre a mística, assim como não há uma forma única de como manifestar a mística que alimenta a vida e a ação das pessoas. Tudo o que se pode dizer é que a mística tem um conteúdo que se expressa. Ela deve brotar, e as vezes, até explodir conforme o momento, o ritmo, a cultura das pessoas.
No caminhar da história as concepções do divino se ampliaram e com ela a compreensão da mística como algo parte do modo de ser humano e de suas relações.
Temos um excelente exemplo com o teólogo cristão e cientista Teilhard de Chardin desenvolveu e viveu uma mística a partir da percepção de Deus como criador presente em todas as coisas e pessoas. A relação com este Deus convida a uma atitude amorosa e a uma sintonia que faz o místico sentir-se parte deste todo, em perfeita comunhão entre matéria e espírito. A mística de Teilhard se tornou completa, terna e amorosa a partir de sua relação com o feminino. Toda sua teoria elaborada através do mergulhar espiritual em Deus e sua criação encontrou forma e sentido ao aprofundar o sentimento amoroso que acontece na relação apaixonada entre uma mulher e um homem. Estar apaixonado por alguém e as vibrações que isso desencadeia, é um reflexo real da paixão pelo divino. Sua tentativa mística foi de entrar no sentido profundo da Encarnação de Deus Filho que ao encarnar-se uniu o divino ao humano e o humano ao divino. O corporal e o espiritual são uma e única realidade, parte do mesmo todo. Sua mística é o reflexo desta compreensão do divino e do humano, de sua espiritualidade, e vai se revelar no modo de ser, de entender e de se relacionar.
A Mística pode ser comparada ao sal na comida, não se vê, mas se sente, e quando não está se sente ainda mais; ou como o fermento na massa, não se vê, mas é ele que faz a massa crescer dando textura e forma ao pão; ou como o ar que respiramos que não se vê, mas sem ele não sobrevivemos; ou mesmo como o amor que não se vê, mas que ao existir se transmite pela delicadeza, pela ternura, pelo perdão, pela disponibilidade, pelo serviço, pelo carinho, etc....
UNICIDADE DA PESSOA
O corpo é o nosso modo de ser e estar no mundo, é um espaço único e insubstituível que nos foi dado. Ele nos confere nossa identidade visível com nome e referências de lugar e tempo. É no corpo e com o corpo que crescemos como um todo. Por isso nosso corpo é inteligência, é vontade livre, é capacidade de amar. É ele que revela nossas energias, emoções e capacidades e é nele também que sentimos nossas limitações. O pulsar da vida que sentimos em nosso corpo é a sexualidade, energia que concentra a raiz de nossos impulsos e desejos.
A cultura atual, hedonista e consumista, perdeu a compreensão da sexualidade como um todo, reduzindo-a aos sentidos e ao prazer físico que se transformou em algo egoísta e dominador nos vários níveis da vida. Esta redução fez perder o senso de realidade e de beleza diversificada, impondo modelos de corpo ideal, com base no consumismo e na manipulação, o que fez aumentar a discriminação e o preconceito com tantos que portam uma diferença mais perceptível em seu corpo.
É a sexualidade que nos leva a buscar o conhecimento de nós mesmos, o sentido para a vida, o cultivo de amizades e de relações, e a buscar a felicidade como desejo ultimo de cada um. A sexualidade se expressa em todo nosso ser e agir como mulher e como homem, e nos empolga a viver prazerosamente a vida. Dela decorre a sensualidade que é a vivencia da sexualidade através dos sentidos e do prazer. A sensualidade faz sentir os prazeres sensuais como comer bem, cheirar deliciosos perfumes, acariciar outros corpos e nosso próprio corpo, escutar música, admirar o belo, sensibilizar-nos com a simplicidade das crianças..., "sentir a partir do coração",... perceber o divino presente na criação. Da sensualidade nasce o cavalheirismo, a delicadeza e a cordialidade. A sensualidade é também uma das vias de manipulação de nossos interesses. Pelo fato de despertar os sentidos, a atenção e a atração cria necessidades tanto de dentro para fora como de fora para dentro.
Recuperar este entendimento de sexualidade, nos levará a perceber que toda e qualquer atividade ou intervenção, seja qual for o domínio de nossa ação, pressupõe uma aceitação e convivência sadia com nosso corpo como UM. O mergulho espiritual profundo exige estar em paz consigo, acolher as próprias limitações e ter um razoável equilíbrio das emoções para que possa se constituir em uma experiência libertadora.
A falta de um auto-conhecimento razoável e de uma serenidade na relação afetiva e sexual, pode nos fazer mergulhar, muitas vezes, em pseudo-espiritualidades, provocando fuga para o espiritual, sem conseguir elaborar uma experiência libertadora e nem encontrar no espiritual uma motivação para a comunhão e o relacionamento com as pessoas e toda a criação.a natureza.
ESPIRITUALIDADE E MISTICA
Espiritualidade e mística produzem uma transformação que começa no interior de cada pessoa e se estende para a comunidade, sociedade, nas relações consigo, através de seu corpo, com os seus semelhantes, com a natureza e o universo.
A Espiritualidade e a Mística não estão fora da pessoa. É a vivencia da encarnação, um aprofundar, um dar sentido para vida no seu todo, por pessoas que vivem em um contexto social e econômico concreto, por isso é a busca concreta de resposta para as questões mais profundas do humano, da sua relação concreta com a natureza, seus semelhantes e o divino feitos por pessoas que vivem, são um corpo, em uma determinada realidade e cultura.
A espiritualidade e a mística serão libertadores se estiverem enraizados, pés no chão. São vividas por pessoas situadas no conjunto do nosso mundo, considerando causas e conseqüências provenientes da cultura elaborada em nosso contexto social e religioso. Elas passam pelo corpo. O imanente e o transcendente se pertencem mutuamente. A imanência se completa na transcendência. Uma Espiritualidade sadia transmitirá uma Mística quando houver harmonia entre corpo, mente e espírito, aceitação de nós mesmos como somos e com as diferenças e as limitações que tivermos, recuperando assim a capacidade de reconhecer e admirar a harmonia e a beleza existentes nas diversidade que passa a ser extremamente significativa.
A Espiritualidade e a Mística não se vêem, mas transparecem nas atitudes, se revelam no modo de ser, de agir e de reagir diante das coisas e dos fatos. Revelam-se numa postura ética e no cuidado com o semelhante, com a natureza e toda criação.
E num sentido amplo se entende que há uma mística e um modo próprio de ser em cada conjuntura, tanto de espiritualidade como de política ou de profissão. Por exemplo, há uma mística do exercício do poder que será diferente se concebido como mando ou como serviço. Há uma mística no exercício parlamentar dos políticos que será diferenciado entre exercê-lo como proveito próprio ou como representatividade popular no governo... Assim haverá diferenças entre a mística de uma espiritualidade mais voltada para o transcendente= vertical ou para o imanente = horizontal.
Se considerarmos nosso ser pessoa, como parte da criação e com sua fonte em Deus UM, não podemos dissociar o físico do espiritual, formamos uma única e mesma realidade, parte de um mesmo todo. Se aceitamos a encarnação de Jesus Cristo como Deus feito ser humano, aceitamos conseqüentemente a divinização da vida em nosso e a mútua participação entre o divino e o humano.
Assim se somos Um, pessoas únicas, somos convidados a valorizar nossa energia vital que é a sexualidade e se expressa em nosso modo de falar, de sorrir, de sentir, de nos tocar, de nos comprometer, de viver a vida em todas as suas dimensões. Com esta compreensão adquirimos uma mística na qual reconhecemos estar fazendo a Deus o que fazemos com as pessoas e a criação, ou seja, quanto mais intima e visceral for nossa relação com as pessoas, mais digna, respeitosa e intima será nossa relação com Deus e vice versa.
Recuperaremos a beleza das relações humanas, superando nosso desejo de posse, valorizando a gratuidade da doação, e nos tornado gratuitos, fazendo de nossos encontros momentos de ternura, justiça e cordialidade e dando sadia vazão a nossa sensualidade, expressão de nossa sexualidade.
A partir do reconhecimento desta integralidade e comunhão entre o divino e o humano, nossas relações nos mais diferentes níveis, serão sempre uma celebração do amor que faz feliz e não de egoísmo e auto satisfação, onde nos tornamos objeto um para o outro. Ultrapassa-se o moralismo do “certo” e “errado” para descobrir a beleza do projeto de Deus que nos criou para uma liberdade partilhada, que proporciona prazer, com sabor de vitória e um apelo para uma entrega e serviço cada vez maior. Respeitando as diferenças e com grande reverencia e respeito pelo outro e pela outra, reconhecemos que ao amar a outra pessoa estou também amando a mim mesma e a Deus que é a fonte desse Amor.
Estar apaixonado por uma pessoa ou por Deus é a melhor sensação do mundo, tudo fica fácil. Assim podemos compreender o que Jesus disse: meu jugo é suave e o meu fardo é leve. Estar apaixonada pela vida abre um leque enorme de perspectivas, torna-se expressão do infinito e traz um sabor de eterno. Deus nos convida a viver apaixonadamente.

FORMAS DE CONCRETIZAR A MÍSTICA – alguns exemplos
Na postura pessoal. A mística é a vivência de valores e convicções. Por isso, é na vida e nas atitudes pessoais que a mística mais se manifesta.
Por exemplo: a) o amor pelo povo; b) a solidariedade; c) o espírito de humildade, d) o espírito de superação, iniciativa e ousadia. e) o espírito de sacrifício; f) o companheirismo, g) a pedagogia do exemplo;
Na beleza e acolhimento do ambiente. A mística deve aparecer e atrair pela simplicidade e significância dos adornos, pela simbologia, luz, cores, festa, música. São fatores que despertam as diversas dimensões do ser humano como a sensibilidade, subjetividade, cultura, história, espiritualidade.
Na manifestação pública e coletiva. Cada grupo tem formas particulares de expressar seus valores, princípios e sua vida. Mas, a experiência recomenda que se leve em conta alguns critérios na manifestação pública da mística:
a) Ser uma atividade onde as pessoas participam com o corpo, mente e sentimento;
b) Não é um show para ser assistido; deve envolver as pessoas (o uso da poesia ou canção exige texto quem participa e alguém que saiba tocar);
c) Mística não combina com a preparação de surpresas, causar impacto, provocar sensação...
d) A celebração da mística deve ser bonita, criativa, breve, com certa solenidade, simples e bem feita e sempre ligada ao tema do momento;
e) É bom usar símbolos, gestos e incorporar expressões culturais, testemunhos pessoais, contudo, é preciso evitar que se torne mera apresentação teatral;
f) A mística pode ser expressa no começo de uma atividade coletiva. Ela concentra a atenção e recorda o espírito que une o grupo. Pode e deve ser feita a qualquer momento: um canto, um grito de guerra, uma declamação, um silêncio...
g) A preparação é necessária para evitar a improvisação, mas não pode virar um tormento para as pessoas que coordenam a celebração;
h) Não é necessariamente uma “reza”, mas é momento sério, solene que não comporta dispersão, cochichos e brincadeiras descabidas.
Vivemos numa sociedade altamente acelerada em seus processos históricos-sociais, o cultivo da espiritualidade e a manifestação mística exige que busquemos lugares onde possamos encontrar condições de silêncio, calma e paz, adequados para a interiorização. Contudo, não podemos reduzir estas manifestações somente nestas condições pois tiraríamos a riqueza da espontaneidade e a oportunidade de transformar outros ambientes co0m,o espaços celebrativos, pois a espiritualidade deveria se manifestar em todas as ocasiões da vida, no modo de ser das pessoas e não somente em momentos pontuais..
Retomando as três dimensões fundamentais do único ser humano: a exterioridade, a interioridade e a profundidade.
A exterioridade humana: a corporeidade. A exterioridade é tudo o que diz respeito ao conjunto de relações que o ser humano entretém com o universo, com a natureza, com a sociedade, com os outros e com sua própria realidade concreta em termos de cuidado com o ar que respira, com os alimentos que consome/comunga,com a água que bebe,com a roupas que veste e com as energias que vitalizam sua corporeidade. Normalmente se entende essa dimensão como corpo. Mas corpo não é um cadáver. É o próprio ser humano todo inteiro mergulhado no tempo e na matéria, corpo vivo, dotado de inteligência, de sentimento, de compaixão, de amor e de êxtase. Esse corpo total vive numa trama de relações para fora e para além de si mesmo. Tomado nessa acepção fala-se hoje de corporeidade ao invés de simplesmente corpo.
A interioridade: a psiqué humana. A interioridade é constituída pelo universo da psiqué, tão complexo quanto o mundo exterior, habitado por instintos, pelo desejo, por paixões, por imagens poderosas e por arquétipos ancestrais. O desejo constitui, possivelmente, a estrutura básica da psiqué humana. Sua dinâmica é ilimitada. Como seres desejantes, não desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo. O obscuro e permanente objeto do desejo é o Ser em sua totalidade. A tentação é identificar o Ser com alguma de suas manifestações, como a beleza, a posse, o dinheiro, a saúde, a carreira profissional e a namorada, o namorado, os filhos, assim por diante. Quando isso ocorre, surge a fetichização do objeto desejado. Significa a ilusória identificação do absoluto com algo relativo, do Ser ilimitado com o ente limitado. O efeito é a frustração porque a dinâmica do desejo de querer o todo e não a parte se vê contrariada. Daí, no termo, predominar o sentimento de irrealização e, conseqüentemente, o vazio existencial.
O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo para que ao passar pelos vários objetos de sua realização – é irrenunciável que passe - não perca a memória bem aventurada do único grande objeto que o faz descansar, o Ser, o Absoluto, a Realidade fontal, Aquele que orienta e guia o nosso ser. O Deus que aqui emerge não é simplesmente o Deus das religiões, mas o Deus da caminhada pessoal, aquela instância de valor supremo, aquela dimensão sagrada em nós, inegociável e intransferível. Essas qualificações configuram aquilo que, existencialmente, chamamos de Deus.
A interioridade é também denominada também de mente humana, entendida como a totalidade do ser humano voltada para dentro, captando todas as ressonâncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele.
A profundidade: o espírito. Por fim o ser humano possui profundidade. Tem a capacidade de captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama. Apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. Todas elas possuem uma terceira margem. São símbolos e metáforas de outra realidade que as ultrapassa e que elas recordam, trazem presente e a ela sempre remetem.
Assim a montanha não é apenas montanha. Em sendo montanha, traduz o que significa majestade. O mar evoca grandiosidade; o céu estrelado, infinitude; os olhos profundos de uma criança, o mistério da vida humana e do universo.
O ser humano capta valores e significados e não apenas fatos e acontecimentos. O que definitivamente conta não são as coisas que nos acontecem, mas o que elas significam para a nossa vida e que experiências elas nos propiciam. As coisas, então, passam a ter caráter simbólico e sacramental: nos recordam o vivido e alimentam nossa interioridade. Não é sem razão que enchemos nossa casa ou o nosso quarto de fotos, de objetos queridos dos pais, dos avós, dos amigos, daqueles que entraram em nossa vida e significaram muito. Pode ser o último toco de cigarro do pai que morreu de enfarte ou o pente de madeira da tia que morreu ou a carta emocionada do namorado que revelou seu amor. Aqueles objetos não são mais objetos. São sacramentos, pois falam, recordam, tornam presente significados, caros ao coração.
Captar a profundidade do mundo desta forma, de si mesmo e de cada coisa constitui o que se chamou de espírito. Espírito não é uma parte do ser humano. É aquele momento da consciência mediante o qual captamos o significado e o valor das coisas. Mais ainda, é aquele estado de consciência pelo qual apreendemos o todo e a nós mesmos como parte e parcela deste todo.
O espírito nos permite fazer uma experiência de não-dualidade. “Tu és isso tudo” dizem os Upanishads da India, apontando para o universo. Ou “tu és o todo” dizem os yogis. “O Reino de Deus está dentro de vós” proclama Jesus. Estas afirmações remetem a uma experiência vivida e não a uma doutrina. A experiência é que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à Fonte Originante. Um fio de energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em cosmos e não em caos, em sinfonia e não disfonia.
A planta não está apenas diante de mim. Ela está como ressonância, símbolo e valor dentro de mim. Há em mim uma dimensão montanha, vegetal, animal, humana e divina. Espiritualidade não consiste em saber disso, mas em vivenciar e fazer disso tudo conteúdo de experiência. Blaise Pascal, um místico frances dizia: “crer em Deus não é pensar em Deus mas sentir Deus”. A partir da experiência tudo se transfigura. Tudo vem carregado de veneração e de sacralidade.
A singularidade do ser humano consiste em experimentar a sua própria profundidade. Auscultando a si mesmo percebe que emergem de seu profundo apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro, Deus. Nós nos damos conta da Presença que sempre nos acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza nossa vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da nossa vida. A fé cristã nos apresenta este mistério como mistério da trindade, Trindade de Ternura, que se relaciona e transborda de amor, ternura e misericórdia pelo ser humano. É a nossa energia originária, que integra todas as outras energias que fazem parte do nosso ser: energia sexual, emocional, intelectual.
Tornar-se filho e/ou filha de Deus pertence ao processo de acolher esta energia, criar espaço para esse Deus de ternura e auscultar seus apelos, integrando-os em nosso projeto de vida. É a espiritualidade no seu sentido antropológico de base. Para ter e alimentar espiritualidade a pessoa não precisa professar um credo ou aderir a uma instituição religiosa. A espiritualidade não é monopólio de ninguém, mas se encontra em cada pessoa e em todas as fases da vida. Essa profundidade em nós representa a condição humana espiritual, aquilo que designamos espiritualidade.
Obviamente para as pessoas religiosas, esse Centro é Deus e os apelos que dele derivam é sua Palavra. As religiões vivem desta experiência. Articulam-na em doutrinas, em ritos, celebrações e em caminhos éticos e espirituais. Sua função primordial reside em criar e oferecer condições para que cada pessoa humana e as comunidades possam fazer um mergulho na realidade divina e fazer a sua experiência pessoal de Deus.
Essa experiência porque é experiência e não doutrina tem como efeito a irradiação de serenidade, de profunda paz e de ausência do medo. A pessoa sente-se amada, acolhida e aconchegada num Utero divino, O que lhe acontecer, acontece no amor desta Realidade amorosa. Até a morte é exorcizada em seu caráter de espantalho da vida. É vivida como parte da vida, como o momento alquímico da grande transformação para poder estar, de fato, no Todo e no coração de Deus.
Esta espiritualidade é um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstâncias. Mesmo dentro das tarefas diárias da casa, trabalhando na fábrica, andando de carro, conversando com os amigos, vivendo a intimidade com a pessoa amada, a pessoa que criou espaço para a profundidade e para o espiritual está centrado, sereno e pervadido de paz. Irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si. Esse Deus é amor que no dizer do poeta Dante move o céu, todas as estrelas e o nosso próprio coração.
Esta espiritualidade tão esquecida e tão necessária é condição para uma vida integrada e singelamente feliz. Ela exorciza o complexo mais difícil de ser integrado: o envelhecimento e a morte. Para a pessoa espiritual o envelhecer e o morrer pertencem à vida, não matam a vida, mas transfiguram a vida, permitindo um patamar novo para a vida. Assim como ao nascer, nós mesmos não tivemos que nos preocupar, pois, a natureza agiu sabiamente e o cuidado humano zelou para que esse curso natural acontecesse, assim analogamente com a morte: passamos para outro estado de consciência sem nos darmos conta dessa passagem. Quando acordamos nos encontraremos nos braços aconchegantes do Pai e Mãe de infinita bondade, que desde sempre nos esperavam. Cairemos em seus braços. E então nos perdemos para dentro do amor e da fonte de vida.
Referencias bibliográficas
JUNGES, Nelson Espiritualidade e Mística, Corporeidade e Sexualidade. Artigo na internet:
BOFF, Leonardo (2001). Espiritualidade – Um Caminho de Transformação. Rio de Janeiro – Ed. Sextante
MOSER, Antonio (2001). O Enigma da Esfinge – A Sexualidade. Petrópolis- RJ. Editora Vozes
GRÜN, Anselm (2002) Mística e Eros. Curitiba – Lyra Editorial
FOUCAULT, Michel (2003)História da Sexualidade -1: A Vontade de Saber(15ª ed.). Rio de Janeiro – Graal
- (2003) História da sexualidade - 2: O Uso dos Prazeres(10ª Ed.) Rio de Janeiro – Graal
site de Leonardo Boff
http://entrelacosdocoracao.blogspot.com/2010/04/o-que-e-mistica-parte-iii.html
www.leonardoboff.com/site/.../espiritualidade.htm -


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